O figueiral e a vinha dos netos do Corsário do Almargem

Monumenta Henricina é uma obra arquivística que consiste numa compilação de documentos arquivados, a maioria na Torre do Tombo, relativos à época dos Descobrimentos, e mesmo antes desta, ainda em período medieval, no que se poderia chamar de período pré-expansão portuguesa. Foi compilado nos anos 60 pela Universidade de Coimbra . Todos os seus catorze volumes estão disponíveis online tanto no Google Books como no archive.org . Já aqui referi alguns documentos relativos à família Franca que se estabeleceu em Tavira por volta de fins do século XIII, começando por Lançarote da Franca que teria acompanhado Manuel Pessanha na sua vinda para Portugal e, dizem alguns é o Lanzarote Malocello que figura nos anais da História que redescobriu as Canárias para os europeus. Este Lançarote seria genovês, tal como o primeiro almirante da Marinha Portuguesa, e dedicar-se-ia tanto à defesa das costas portuguesas como ao corso. As duas coisas naqueles tempos não estavam separadas.

Existem  cartas de D. Fernando e D. João I confirmando aos descendentes de Lançarote da Franca (neste caso, Lopo Afonso e mais Diogo Lopes) , a posse das duas ilhas descobertas por Lançarote, a ilha que tem o seu nome e a Ilha da Gomeira . Voltei a descobrir há pouco tempo documentação neste volumoso compêndio documental uma referência a dois irmãos, netos de um corsário estabelecido em Tavira e recompensado por El-Rei D. Fernando, o último da dinastia afonsina, com foros no Almargem, concretamente com um figueiral e uma vinha. Anica (2001), refere que o documento mais antigo refere ao Almargem e mais concretamente vem do reinado de Afonso V e refere a ponte e um foro que teria sido dado para se construísse uma casa e um moinho junto da ponte. Este documento citado no Monumenta Henricina é mais antigo e falam de dois irmãos, netos do corsário Afonso Ramos, que requereram junto do d’el-rei D. Duarte, pai de Afonso V, a confirmação da concessão dos foros que haviam sido outorgados ao seu avô. Nada é dito a respeito se os dois netos, à semelhança do avô, se dedicavam à prática do corso. Provavelmente os terrenos sobre os quais incidiam os foros concedidos ao avô corsário seriam alvo de disputa com outros proprietários, daí advindo quiçá a necessidade dos dois netos de confirmarem a concessão feita ao avô por D. Fernando. De qualquer forma vemos que a cidade do Gilão já seria em temos pré-descobertas um porto de albergue da marinha de guerra portuguesa, e que a prática do corso faria parte das actividades habituais desta mesma marinha, conforme demonstrado neste documento, um marinheiro corsário que recebeu foros junto de Tavira.

Este documento só me veio à estampa enquanto andava a pesquisar sobre ocorrências do topónimo Almargem e a aferir a antiguidade do mesmo, e na mesma medida, se as referências contemplavam a existência da velha ponte . De acordo com que descrevi em post anterior, o topónimo pode muito bem provir da dominação árabe, já que al-marj significa “várzea”. E o vale da Ribeira do Almargem é uma várzea bem larga,  preenchida por solos de aluvião. No romance histórico O milagre da fonte da Gomeira, especulei que a várzea seria usada para lugar de criação de gado equestre por parte dos Franca, que na história, seriam os ancestrais foreiros das Terras da Ordem (que veriam a constituir mais tarde a freguesia da Conceição). No fundo, a lenda tem um fundo de verdade, na origem do topónimo Almargem.

Fonte: Monumenta Henricina, Volume IV (1431-1434) – Google Livros