A “Azinhaga dos Defuntos”

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Uma muralha dentro da propriedade vizinha…

Aproveitando o facto de hoje ser o “dia dos mortos”, uma festividade que pouco ou nada tem a ver a Liturgia Católica (mas então o carnaval tem?), aproveitei para vir falar dum velho caminho, quiçá esquecido dos mais jovens, que era chamado de “Azinhaga dos Defuntos”.
No passado dia 16 de Setembro, domingo, de manhã, aproveitei para ir ver no terreno se ainda existiam vestígios da chamada “Azinhaga dos Defuntos”, um caminho rural da freguesia, que segundo tinha ouvido contar por um amigo de Cabanas – ( o “grande” Hermínio Afonso) que viveu a infância na antiga fazenda do Benamor, onde o avô era caseiro – que a delimitava pelo lado leste. Dizia ele que tinha esse nome pelo facto de as pessoas da Serra transportarem por ele os corpos dos seus entes queridos antes de lhes darem os últimos sacramentos na Igreja, celebrarem o seu funeral e transportarem-no para a sua derradeira morada. Ora sendo a Conceição freguesia desde o século XVI e a Quinta do Benamor também antiga, terão decorrido uns quatrocentos anos em que esta “azinhaga” (ou caminho rural) deve ter sido efectivamente usada, perdurando na memória oral colectiva da população a existência desse caminho. Acontece que, ao chegar à povoação, atravessava por um vau o Ribeiro da Conceição para a outra margem (uma vez que o leito do ribeiro vem de nordeste). E dizia mais o meu velho amigo que esse caminho depois continuava pela margem esquerda do ribeiro até terminar na Conceição junto da chamada “Casa Velha”, um estabelecimento situado logo a seguir a passar por cima do ribeiro, do lado norte da Rua 25 de Abril.

Ora a “Casa Velha” (passo a publicidade) ainda existe, é um restaurante que fica logo do lado esquerdo para quem entra na Rua 25 de Abril na Conceição ao passar a pequena ponte sobre o ribeiro (provavelmente ninguém dá por isso, já que o ribeiro depois “desaparece” da vida do lado direito da ponte, visto que foi “entubado” para passar debaixo do solo até voltar à superfície já perto da Igreja).
Antigamente, a Estrada Real 78 do Algarve, que digamos era a “Nacional 125” daquele tempo entrava para dentro do povoado da Conceição, e a ponte que foi construída sobre o ribeiro é aquela que ainda lá está. Se não me engano, essa estrada foi construída por volta de 1870, de acordo com Anica(2008,2011). Pouco menos de 100 anos depois, foi construído um desvio da EN 125 (1968?) para retirar o trânsito do interior do povoado, passando o trânsito a fazer-se pelo lado norte da aldeia da Conceição.

Certo é que essa construção desse desvio a direito, sem respeitar as estradas rurais (“azinhagas”) existentes, acabou por apagar a “Azinhaga dos Defuntos” do mapa. Hoje em dia o Ribeiro da Conceição aparece de “debaixo” da 125 vindo não se sabe de onde. E o que restava da “Azinhaga dos Defuntos” é um mero caminho (agora coberto por buganvíleas) acompanhando a margem esquerda junto da antiga “Casa Velha”, depois de atravessar a antiga ponte da Estrada Real sobre o ribeiro, como tinha dito.

Pensava que a azinhaga não passava apenas se calhar de “história de bruxas” até que ao reler a obra de “Monografia da Freguesia da Conceição da Tavira”(Anica,2008), vejo lá a referência na enumeração da toponímia por parte do autor da freguesia à “Azinhaga dos Defuntos”. Mais, vejo um mapa feito pela mão do própria capitão Anica em que mostra um mapa da freguesia em que aparece a Herdade do Benamor delimitada a leste pelo tal “caminho dos mortos”. Afinal não era lenda nenhuma. A dita azinhaga tinha existido mesmo!

Querendo comprovar realmente se ainda haveria vestígios da azinhaga, que “passou à história” com o desvio da EN125, fui procurar encontrar no Google Earth vestígios deste antigo caminho rural. Vi qualquer coisa que parecia ser realmente um “caminho rural”, mas com um coberto vegetal denso, servindo de limite entre duas propriedades – o actual campo de golfe do Benamor e a propriedade a leste desta, de que desconheço o nome. O resultado é o mapa interactivo que apresento no final deste post.

Qualquer pessoa pode entrar na antiga Quinta do Benamor e passear pelos trilhos do campo de golfe, não encontrei nenhum aviso de “proibido pessoal estranho” ou “zona de acesso restrito”. Aliás, a maior parte das edificações da antiga quinta, de que terei oportunidade de detalhar numa próxima oportunidade, incluindo a capela, está todo muito bem estimado e conservado. O lugar é deveras prazenteiro, mesmo para quem não aprecie golfe.
Lamento é a exploração do espaço da velha quinta apenas para campo de golfe, sem fazerem qualquer referência à história do local, que não é curta, é uma quinta que tem séculos (trezentos pelo menos, havendo pistas que podem recuar mais atrás).
Mas voltando ao assunto em questão, meti-me pelo trilho que acompanhava a vedação leste do terreno e, espreitando por entre o arvoredo e as trepadeiras que cobriam a vedação, pude realmente ver, que a Azinhaga ainda lá está, mas entretanto, por falta de uso devido a ter sido interrompida pela EN 125, os detentores do Benamor decidiram fazer a sua vedação com a Azinhaga do lado de fora, o que faz sentido, para evitar que as bolas se escapem para a propriedade do vizinho. Assim, do ponto de vista de quem está no “green”, é impossível atravessar a vedação em rede,  a Azinhaga está inacessível, não existe forma de chegar por ela de dentro do campo de golfe. Apenas talvez da ponta norte do caminho, algo que eu não explorei.

Acredito que a Azinhaga deve ter deixado de ser usada muito antes da construção da EN125, pois o acesso dos habitantes da zona mais alta da freguesia à sua sede devia ser feita de maneira semanal, nem que fosse para virem assistir à missa dominical passasse a ser feito pela alternativa mais próxima, que é a estrada da Cumeada. Provavelmente o próprio facto de o caminho se chamar “Azinhaga dos Defuntos” ajudou a isso mesmo, a criar uma lenda ou mito, que provocou receio junto da própria população de índole mais crédula, de que seria um Caminho dos Mortos, a ser só usado quando alguém transportasse um morto, talvez numa carroça puxada por bestas, com o cadáver tapado por um cobertor.

Quero crer que esse termo terá sido cunhado pelos proprietários das duas fazendas de que o referido caminho servia de limite, de forma a que os mais supersticiosos e medrosos não passassem por lá, para não virem a furtar a produção agrícola.

De qualquer forma, é um testemunho oral que não se devia perder, e essa é uma das missões para que este blog foi criado, conservar a memória oral de outros tempos, de forma escrita de forma que fique para a posteridade.

Abaixo encontra-se um mapa interactivo com o trajecto da azinhaga, em que esta aparece a traço preto cheio, juntamente com os pontos de interesse referidos no texto, a antiga ponte da estrada real, que constitui actualmente a espinha dorsal da localidade da Conceição (Rua 25 de Abril), a Igreja, o Cemitério e o entroncamento da estrada da Cumeada, principal acesso da povoação da serra à sede de freguesia).