Já foi feita referência ao topónimo mais antigo da freguesia histórica da Conceição: Gomeira, mas existem outros topónimos igualmente antigos na freguesia, e um deles é o Almargem, que dá o nome à ribeira do mesmo nome que separa a freguesia da Conceição da freguesia histórica de Santa Maria e que surge em mapas muito antigos, pelo menos desde o século XVI. A ideia do presente texto é dar uma ideia de todas as menções existentes em mapas e documentação referente a este topónimo.
No que toca à etimologia do topónimo Almargem, é escusado dizer que não pode deixar de ter origem árabe por causa da sílaba inicial al- . De acordo com o Dicionário de Arabismos na Língua Portuguesa 1 vem de al-marj que significa “prado”,”pastagem” ou “terreno plano”. É possível que na passado almargem fosse usado como palavra na língua quotidiana do dia-a-dia, com os significados enumerados antes. Ora o baixo Almargem, corre num vale que consiste numa grande várzea ladeando as margens da ribeira antes da sua foz. Na verdade, a várzea é um banco de aluvião, composta por sedimentos largados pela ribeira em momentos específicos de inundações em que o curso de água suplanta as suas margens habituais.
Tenho portanto andado muito curioso em investigar a origem do topónimo “Almargem” que, para além de se referir ao vale definido pela Ribeira do mesmo nome e o segundo maior curso de água do concelho de Tavira, define a fronteira entre a freguesia de Tavira e a de Conceição, sendo este traçado bem antigo e que advirá da altura da fundação da freguesia no século XVI. Arriscar-me-ia a dizer que será o traçado de fronteiras mais antigo do concelho de Tavira (a seguir à fronteira das freguesias urbanas de Santa Maria e Santiago, que vem do tempo da conquista cristã – agora unidas depois de 750 anos). A Ribeira do Almargem também é o maior curso de água com caudal que encontramos para quem depois de cruzar o Guadiana entra em Portugal. A Ribeira de Cacela e outros pequenos cursos de água (Álamo, Lacém, Junco, Canada… ) não chegam a ser ribeiros com grande leito…. incapazes o suficiente de impedir uma força de cavalaria de o cruzar (ou “saltar”). A Ribeira do Almargem desagua na Ria Formosa e nos quilómetros finais o seu vale alarga de tal modo que podemos estar perante o que seria no passado um largo estuário que entraria bastante por terra adentro (sendo possível que tivesse existido um estuário comum Gilão/Almargem, onde os dois cursos de água desembocariam). Esse possível cenário em tempos primevos foi discutido numa exposição do Museu de Tavira há vários anos (ver Tavira e os Patrimónios do Mar)2.
Entre Balsa/Tavira e os povoados mais antigos de maior importância (Castillah/Cacela e Baesuris/Castro Marim) haveria de existir uma via de comunicação terrestre porventura desde o tempo dos romanos e existe uma ponte antiga muito para jusante no vale (a cerca de dois a três quilómetros da foz). Esta ponte velha está classificada como imóvel de interesse público e ainda actualmente está ao “serviço”, com algumas limitações óbvias (proibição de cargas superiores a 15 t na ponte).
Agora no que toca a referências a esta ponte e ao topónimo no acervo histórico, diria que é até interessante. Passemos a referi-las nos parágrafos seguintes.
A “ponte velha” do Almargem seria o ponto por onde a estrada Tavira-Cacela-Castro Marim atravessaria a ribeira e a sua existência está comprovada pelo menos desde o século XV, graças a vários documentos da chancelaria de vários reis. É referido em 1454 um alvará de Afonso V dando direito de aforamento de um vau e posterior construção de uma casa e de um moinho junto da referida ponte (Anica,2001) 3.
Em 1560, o primeiro mapa conhecido de Portugal Continental de Fernando Álvaro Seco (com o “oriente” para baixo) mostra o topónimo “Almargem” no local esperado (ver imagem com pormenor).
Mais tarde noutro mapa de cerca de 1670 da autoria do holandês Karel Allard aparece “Almargem” como o nome da barra de acesso a Tavira (ver imagem).
Em 1774 o engenheiro militar José de Sande Vasconcelos faz uma cartografia do vale no seu Mappa das terras dªAlmargem 4. Nele regista todas as propriedades e o nome dos seus respectivos donos assim como todos os pormenores de interesse relevante, e como era seu tino, indo além daquilo que era exclusivamente militar. Seria um simples exercício de cartografia para o senhor ainda na altura tenente-coronel mas na ideia de fazer uma carta dedicada exclusivamente apenas ao vale da ribeira tal poderia adivinhar, na mente do engenheiro, um interesse estratégico na defesa de Tavira, uma vez que este é o primeiro curso de água de maior caudal que qualquer exército invasor terrestre hipotético vindo do leste de Tavira encontraria pelo meio do caminho, sendo portanto de particular interesse cartografá-lo com a importância que merecia! Sande de Vasconcelos faleceu em 1808, mas em 1833 parece que a História veio defender a ideia de Vasconcelos já que de acordo com Silva Lopes na sua Corografia do reino do Algarve 5, é referida que a Ponte foi defendida pelo realista (miguelista) Conde de Mollelos a 23 de Junho de 1833 por uma peça de artilharia e quatro batalhões de voluntários contra o avanço das forças do Duque da Terceira, que haviam desambarcado algures entre Altura e Cacela no dia anterior (há fontes que discordam no local preciso do desembarque). De nada parece ter servido tal apetrecho, pois no texto Silva Lopes continua na passagem seguinte referindo pura e simplesmente, que o duque da Terceira foi nessa mesma noite pernoitar a Tavira.
Para além do nosso Almargem, sei que este topónimo também é usado para designar uma praia junto a Quarteira e existe a povoação de Almargem do Bispo no concelho de Sintra e outra povoação na freguesia de Calde também com uma hipotética ponte romana (!), concelho de Viseu. Estarão também nestas situações também zonas planas as zonas homónimas que usam o mesmo topónimo (só visitei a Almargem de Quarteira, também conhecido por Praia do Cavalo Preto, e configura um vale plano entre duas encostas preenchido por areia, e onde desagua o ribeiro de Carcavai). A propósito deste última, e pelas pesquisas que efectuei parece que vai ser o ponto final de um “greenway” (corredor verde) que acompanha o curso do ribeiro do Carcavai sob proposta da Almargem – Associação ambientalista sedeada em Loulé. Parabéns amigos da Almargem !
Actualização: Além disso, na compilação Monumenta Henricina aparece um documento desconhecido onde fala de dois irmãos de apelido Ramos a quem sua majestade D. Duarte, pai do Afonso V, confirma a benesse de uma vinha e um figueiral junto da referida ponte. Acontece que estes dois irmãos eram netos de um corsário que tinha recebido terrenos no Almargem de acordo no tempo do rei anterior. Esta história é desenvolvida no próximo artigo deste blog.
(Alves, 2013)
(v.a. (Museu de Tavira), 2008)
(Anica, 2001)
(José Sande de Vasconcelos, 1774)
(Silva Lopes, 1841)