A primeira referência a “Gomeira” num documento

Neste dia do ano de 1272 finalmente Afonso III e a Ordem de Santiago chegavam a acordo relativamente à propriedade de terras e bens no Reino do Algarve. Entre as terras que o rei concedeu à Ordem contava-se a “Herdade da Gomeira”.

Original do Tomo 3 da Chancelaria de Afonso III (folio 29 verso). A azul referência a “Gomeira”. A verde é visível “Tavila”, “Caçalla”, “Castrum Marim” e “Abenfabila”, último alcaide mouro de Tavira.

Já referi nos primeiros artigos deste blog que a referência a “Gomeira” vem desde tempos medievais, sendo o topónimo mais antigo da freguesia, e as ligações da mesma com a Ordem de Santiago, porque supostamente a jurisdição destas terras terá sido concedida por Afonso III em documento régio pouco tempo após a conquista cristã de Tavira. O Foral de Afonso III, datado de 1266, cujo texto se reproduz aqui em português actual, é no entanto omisso relativamente ao topónimo. Após algum tempo de pesquisa, consegui finalmente entender que a concessão à Ordem é feita fora do âmbito do foral, e feita no contexto das terras algarvias que Afonso III pretendia que ficassem na sua jurisdição após negociar com a ordem as terras que teriam sido conquistadas pelos espatários como foram Cacela, Ayamonte e  Tavira. Afonso III não tinha direito pleno sobre o Algarve, porque ainda estava sob a suserania do seu sogro Afonso X de Castela e Leão. No entanto, em 1267, com o tratado de Badajoz, Afonso III vai ver finalmente obter do seu sogro o direito de cedência da província mais meridional de Portugal no reino lusitano. Com esta questão da fronteira luso-castelhana definida, Afonso III vai então tratar com os representantes da Ordem de Santiago de resolver os diferendos relativos aos castelos e terras inicialmente detidos pela Ordem após a conquista dos castelos.

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O Sr. Marcelino

Ao estar a consultar os registos paroquiais da freguesia do fim do século XIX, para poder cruzar com os registos dos soldados da freguesia que foram combater na Flandres em 1917 deparei-me com o registo de baptismo de um senhor que em Cabanas ficou célebre. Trata-se do senhor Marcelino, nascido a 30 de Maio de 1897, que cheguei ao conhecer bem na infância. Já a minha avó, que tinha nascido em 1926 o conhecera e faleceu ainda antes dele em 1998, era adulto feito. Dizia ela que ele tinha 90 anos já na altura (na década de 80) e passeava-se de bicicleta por Cabanas sem contar o peso da idade. Pois bem, como podem bem ver pelo averbamento feito no Arquivo Distrital de Faro (!) o sr. Marcelino viveu até 2003, falecendo com 106 anos de idade e ainda me lembro de ver a reportagem dele na TVI acho que em 1998, já tinha ultrapassado a barreira dos 100 anos e passar a ter direito a usar uma idade com marca de três dígitos. O que me recordo dessa reportagem dizer que ainda que ainda subia ao telhado reparar as telhas da casa. Ele vivia na Rua José Correia do Nascimento, onde fica o restaurante da Grelha. Deve ter sido um caso num milhão, ou em dez milhões, o do sr. Marcelino, ter tido o privilégio de ter vivido em tres séculos diferentes.

Certidão de baptismo do sr. Marcelino José, a 30 de Maio de 1897, na Igreja da Conceição

Uma união de freguesias mas a Santa já não vem a Cabanas

Venho por esta via manifestar a minha estranheza para com o facto de mais uma vez este ano não se ter efectuado o trajecto da tradicional procissão no dia 8 de Dezembro, feriado devotado à padroeira nacional, Nossa Senhora da Conceição, com a procissão desde o local de repouso da imagem, na Igreja Paroquial até à vila de Cabanas. Há registos de que a procissão incluía a descida até à marginal de Cabanas, e se fazia todos os anos desde tempos imemoriais… mas isso terminou. E terminou desde o ano passado. Mas no ano passado ainda encetaram uma “visita” nocturna pouco anunciada uns poucos dias antes do dia feriado em Cabanas.

Traseiras do Igreja. Possível localização do primitivo cemitério.


Mas este ano nem isso sucedeu, viu-se uma procissão muito lânguida, mais curta que o habitual, sem a saída de outros imagens de santos como o São Luís e o São Sebastião, como era costume.
Diz o diz que disse que a Santa da Conceição se zangou com os cabanenses e é ciumenta, por eles terem decidido devotar-se a uma nova virgem, Nossa Senhora do Mar, cujas “Festas dos Pescadores” se realizam em Agosto. E por isso a Padroeira Nacional prefere dar a cara apenas aos seus devotos que moram no lugar outrora conhecido  por “Sítio da Igreja”.

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Estácio da Veiga e a sua casa rural das Cabanas da Conceição

Morreu há 127 anos na sua casa de Arroios em Lisboa o pioneiro da arqueologia portuguesa, Estácio da Veiga. Na data da sua morte vamos relembrar a casa rural que Estácio herdou do seu avô e as relações que manteve com a freguesia, onde não deixou de fazer também descobertas…

Muita gente não saberá, mas o emérito pioneiro da Arqueologia portuguesa Estácio da Veiga possuía uma casa rural em Cabanas , consoante relata Arnaldo Anica na sua Monografia de Cabanas [1]. Rural na época em que ele viveu (1828-1891), porque neste momento tal edifício a existir algum vestígio dele, já foi complemente ocultado debaixo do avanço do betão turístico contemporâneo. As propriedades de Estácio na freguesia da Conceição chegaram-lhe por via de propriedades do avô, o tenente-coronel Sebastião Martins Mestre – um dos líderes da resistência contra as incursões franceses no Algarve –  possuía na freguesia.

Estácio da Veiga na época do seu casamento com Amélia de Claranges Lucotte. Reprodução fotográfica emoldurada na metade esquerda de um porta-retratos de casal, correspondendo a outra metade à de sua mulher. Do arquivo da família, ver [1]. Foto reproduzida do site do CIIPC.

Sebastião Martins Mestre, avô materno e padrinho de Estácio da Veiga, é uma personagem de  muito pouco se sabe a respeito de suas origens, mas novas investigações permitem estabelecer que nasceu em Arenilha (actual Vila Real), algures entre 1762 e 64. Fez parte do regimento de infantaria de Tavira, de onde mais tarde emigrou para Gibraltar onde conheceu a sua esposa, britânica de nascimento, Mary Phillips. As suas ligações com os ingleses permitiram o apoio da Royal Navy no levantamento da resistência algarvia contra a presença francesa no Algarve aquando da 1ª Invasão Francesa (1808). Após a retirada francesa, ficou como governador dos fortes de Cacela e de São João da Barra de Tavira [1], sendo mais tarde presidente da Câmara Municipal de Tavira em 1820 e finalmente Governador Militar de Vila Real de Santo António.  Foi na freguesia da Conceição que Sebastião Martins Mestre foi proprietário de um casa rural em Cabanas (naquela altura chamadas -da Conceição) e uma fazenda no sítio conhecido como Arrancada .  Esta última situa-se próximo do lugar onde actualmente se situa a actual Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR do Almargem). Não é conhecida a forma de como Sebastião Mestre terá adquirido estes bens, mas será tema para explorar num futuro artigo.  Certo é que ambas as propriedades passaram para o seu neto Estácio da Veiga. 

O objectivo deste post não é falar da obra do arqueólogo tavirense, sobejamente conhecida, mas das suas relações com a freguesia da Conceição, e as referências que a ela faz. 

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O bébé “D. Fernando”

ACTUALIZAÇÃO: em que se tornou D. Fernando quando chegou à vida adulta !? Deixei a resposta para este outro artigo.

Nos registos paroquiais, principalmente nos de baptismo, é muito frequente ver anotado na margem o primeiro nome da criança que acabou de receber os santos óleos. Tenho pesquisado cadernos paroquiais na senda da descoberta dos meus antepassados, mas enquanto vasculhava o caderno respeitante ao período 1760-1765, deparei-me com esta preciosidade: uma nota na margem do caderno com um bem visto “D.” antes de “Fernando”, respeitante a um bébé acabado de nascer em Tavira a 13 de Junho de 1761 e baptizado na Paróquia de Santa Maria do Castelo. Acontece que o pequenino D. Fernando, de seu nome completo “Fernando António José Bento Domingos Xavier Balthazar Joaquim João de Noronha” era filho do governador do reino do Algarve D. Rodrigo de Noronha, que havia seis anos antes mudado a sede oficial do Governo do Algarve de Lagos para Tavira, após os tremendos estragos feitos pelo terramoto na cidade barlaventina, onde havia inclusive perdido o filho de nome Francisco (2). Ao mudar-se para Tavira, D. Rodrigo de Noronha quis garantir um poiso mais seguro, uma vez que Tavira havia resistido ao terramoto. Seis anos mais tarde, foi recompensando pelo nascimento deste filho. D. Rodrigo António de Noronha era neto do 3º Marquês de Marialva D. Diogo de Noronha por casamento deste com a marquesa neta de António Luís de Meneses , o herói da Batalha das Linhas de Elvas, o  primeiro marquês. No entanto, no ano seguinte, D. Rodrigo abandonaria o cargo, deixando-o para o Marquês de Louriçal , após a resistência da esposa D. Maria Antónia em permanecer no Algarve, debaixo de grandes dificuldades económicas num reino ainda a recuperar das ruínas do fatal terramoto.(3)

Mapa de Tavira e seu litoral (1951)


Carta Militar do instituto geográfico do Exército de 1951, dez anos após o ciclone de 1941. Situação do Litoral entre Fuzeta e Cabanas na altura. É visível a Barra do Cochicho que abriu em consequência do ciclone. Os quebra-mares da barra artificial aberta em 1930 – e que ainda estão visíveis no mapa – marcam a posição dessa barra entretanto assoreada. 

O figueiral e a vinha dos netos do Corsário do Almargem

Monumenta Henricina é uma obra arquivística que consiste numa compilação de documentos arquivados, a maioria na Torre do Tombo, relativos à época dos Descobrimentos, e mesmo antes desta, ainda em período medieval, no que se poderia chamar de período pré-expansão portuguesa. Foi compilado nos anos 60 pela Universidade de Coimbra . Todos os seus catorze volumes estão disponíveis online tanto no Google Books como no archive.org . Já aqui referi alguns documentos relativos à família Franca que se estabeleceu em Tavira por volta de fins do século XIII, começando por Lançarote da Franca que teria acompanhado Manuel Pessanha na sua vinda para Portugal e, dizem alguns é o Lanzarote Malocello que figura nos anais da História que redescobriu as Canárias para os europeus. Este Lançarote seria genovês, tal como o primeiro almirante da Marinha Portuguesa, e dedicar-se-ia tanto à defesa das costas portuguesas como ao corso. As duas coisas naqueles tempos não estavam separadas.

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Os topónimos mais antigos da freguesia: Almargem

Já foi feita referência ao topónimo mais antigo da freguesia histórica da Conceição: Gomeira, mas existem outros topónimos igualmente antigos na freguesia, e um deles é o Almargem, que dá o nome à ribeira do mesmo nome que separa a freguesia da Conceição da freguesia histórica de Santa Maria e que surge em mapas muito antigos, pelo menos desde o século XVI. A ideia do presente texto é dar uma ideia de todas as menções existentes em mapas e documentação referente a este topónimo.

No que toca à etimologia do topónimo Almargem, é escusado dizer que não pode deixar de ter origem árabe por causa da sílaba inicial al- . De acordo com o Dicionário de Arabismos na Língua Portuguesa [1] vem de al-marj que significa “prado”,”pastagem” ou “terreno plano”.  É possível que na passado  almargem fosse usado como palavra na língua quotidiana do dia-a-dia, com os significados enumerados antes. Ora o baixo Almargem,  corre num vale que consiste numa grande várzea ladeando as margens da ribeira antes da sua foz. Na verdade, a várzea é um banco de aluvião, composta por sedimentos largados pela ribeira em momentos específicos de inundações em que o curso de água suplanta as suas margens habituais.

Tenho portanto andado muito curioso em investigar a origem do topónimo “Almargem” que, para além de se referir ao vale definido pela Ribeira do mesmo nome e o segundo maior curso de água do concelho de Tavira, define a fronteira entre a freguesia de Tavira e a de Conceição, sendo este traçado bem antigo e que advirá da altura da fundação da freguesia no século XVI. Arriscar-me-ia a dizer que será o traçado de fronteiras mais antigo do concelho de Tavira (a seguir à fronteira das freguesias urbanas de Santa Maria e Santiago, que vem do tempo da conquista cristã – agora unidas depois de 750 anos). A Ribeira do Almargem também é o maior curso de água com caudal que encontramos para quem depois de cruzar o Guadiana entra em Portugal. A Ribeira de Cacela e outros pequenos cursos de água (Álamo, Lacém, Junco, Canada… ) não chegam a ser ribeiros com grande leito…. incapazes o suficiente de impedir uma força de cavalaria de o cruzar (ou “saltar”). A Ribeira do Almargem desagua na Ria Formosa e nos quilómetros finais o seu vale alarga de tal modo que podemos estar perante o que seria no passado um largo estuário que entraria bastante por terra adentro (sendo possível que tivesse existido um estuário comum Gilão/Almargem, onde os dois cursos de água desembocariam). Esse possível cenário em tempos primevos foi discutido numa exposição do Museu de Tavira há vários anos (ver Tavira e os Patrimónios do Mar)[1].

Entre Balsa/Tavira e os povoados mais antigos de maior importância (Castillah/Cacela e Baesuris/Castro Marim) haveria de existir uma via de comunicação terrestre porventura desde o tempo dos romanos e existe uma ponte antiga muito para jusante no vale (a cerca de dois a três quilómetros da foz). Esta ponte velha está classificada como imóvel de interesse público e ainda actualmente está ao “serviço”, com algumas limitações óbvias (proibição de cargas superiores a 15 t na ponte).

Agora no que toca a referências a esta ponte e ao topónimo no acervo histórico, diria que é até interessante. Passemos a referi-las nos parágrafos seguintes.

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As armas da cidade de Tavira